sábado, 12 de julho de 2014

LENDA DA GRUTA DE CAMÕES

Nos fins de 1557, segundo afirmam alguns historiadores, encontrava-se LUÍS de CAMÕES desempenhando em Macau o cargo de Provedor de Defuntos e Ausentes. Para ali fora o poeta enviado, numa espécie de desterro, pelo então governador da Índia, Francisco Barreto. Mas nem em Macau ele conseguiu ser feliz. Uma devassa movida, por interesses mesquinhos, condenou-o a deixar a terra que ele já amava PATANE (ali existe uma gruta onde se diz que Luís de Camões escreveu os LUSÍADAS) e a embarcar como prisioneiro na famosa Nau da Prata (fazia uma vez por ano a carreira entre Japão e China, levando prata e o que de melhor tinham  os mercadores .Por isso lhe chamavam a Nau da Prata). A História nada conta de positivo sobre essa aventura de Luís de Camões. Mas essa aventura entrou na tradição popular. E porque já faz parte dela, vamos evoca-la como uma das histórias lendárias mais belas de todos os tempos.

   A manhã estava triste, e sombria. Cheirava a lágrimas.
   Luís de Camões olhou uma vez mais a sua gruta. Estava tão triste como a manhã que o envolvia. Nesse olhar demorado ia toda a saudade de uma despedida. Ali havia sido o seu ninho. Ali havia conhecido sonhos e desesperos. Ali gritara aos quatro ventos toda a sua revolta e angústia pela incompreensão dos homens. Ali recebera, o eco dos seus próprios lamentos, o conforto para a sua luta interior. E chegara a ter paz! Paz de espírito e de corpo! Chegara a ser feliz! Nesse momento, porém, ele teria de abandonar a gruta e apresentar-se ao capitão da Nau da Prata.
    Respirou fundo, dentes serrados, lábios contraídos, garganta apertada por um nó doloroso. Depois, bruscamente, voltou as costas e dirigiu-se para o cais. No seu ar decidido disse ao capitão:
  Aqui me tendes, senhor! Como vedes, não faltei às vossas ordens… nem fugi!
  O homem sorriu:
   Eu sabia que podia confiar na palavra de um fidalgo.
    Que quereis então que eu faça?
   Entrai. As ordens que recebi foram para levar-vos preso, a ferros!
   A ferros? Porque me impõem tal castigo?
   Não sei, senhor. Foram ordens! No entanto … até chegarmos a terra ireis sem ferros. Sereis um prisioneiro em liberdade, a bordo do meu barco.
    Obrigado, senhor capitão!
  Levai a vossa bagagem e instalai-vos.
Luís de Camões curvou-se lentamente. Mas já o capitão indagava, curioso:
   Dizei-me: que rolo de papel é esse que segurais com tanto interesse?
   Com simplicidade, o poeta exclamou:
  É toda a minha fortuna!
  Uma herança?
  Quem sabe? Talvez seja a herança que deixarei a todos os portugueses!
  Não compreendo o que dizeis…
  Camões sorriu de modo enigmático. A sua expressão estranha não condizia com a sua voz clara e firme.
   Às vezes… nem eu me compreendo, mas, este rolo de papel conte versos.
   Versos?
   Sim, senhor capitão. Versos que tenho escrito com sangue e com febre. Versos nos quais pus toda a minha alma, toda a minha saudade de português injustamente ausente da sua terra! Versos que são os meus melhores companheiros de cativeiro. Versos que escrevi na minha gruta muito amada, durante as horas em que era perseguido, amaldiçoado, amesquinhado. Versos que hão de constituir um livro. E esse livro será o maior de todos os meus tesouros!
Tendes paciência para escrever um livro em verso?
  Acabei-o aqui, em Macau, enquanto esperava que a Nau da Prata me viesse buscar.
 O capitão meneou a cabeça, comentando:
   Que coisa bizarra!
  Depois debruçou-se sobre o manuscrito.
 E o que é isto? É o título?
 Sim: «OS LUSÍADAS» é o título do meu livro. Conta a história do nosso povo.
   Pois guardai-o com cautela, não vá o vosso tesouro perder-se! E a Nau pouco tardou em fazer-se ao largo.

  A viagem era longa.
  Vamos rapazes! Nada de demoras! Soltem todo o velame! Temos de ir a toda a força!
  Luís de Camões perguntou ao capitão:
  Posso ajudar nalguma coisa?
  Não: nós bastamo-nos. Ficai com os vossos versos!
 O mar batia na Nau da Prata desfazia-se em espuma. Camões foi até a amurada. A terra começou a ficar mais longe… cada vez mais longe! Distinguia-se ainda o recorte da gruta bizarra onde ele escrevera, realmente, a maior parte dos «LUSÍADAS». Mas em breve esse recorte não seria mais que fumo no horizonte. Camões falou para si próprio, como tantas vezes fazia:
    Gruta de Patane, minha bem-amada, nunca mais te verei! Mas também nunca mais te esquecerei! Gruta onde ficam as minhas lágrimas, onde escrevi os meus versos! Adeus terra de Macau! Adeus para sempre! E ficou de olhar perdido no horizonte. De súbito, uma voz suave, delicada, murmurou a seu lado:
   Senhor, estais assim tão triste por abalar?
  Camões voltou-se. Perto, uma figurinha débil de mulher olhava-o com ternura. Perguntou:
  Quem sois vós?
   Senhor, de que adianta o meu nome se nunca reparastes em mim quando habitáveis a gruta de Patane?
  Nunca reparei em vós? Mas é possível? Sois jovem e tão bela!
  Mas eu sou uma pobre nativa e vós um fidalgo português!
   Luís de Camões sorriu.
   Ouvi o que vos digo: decerto nunca vos dirigistes a mim como agora. Se o fizésseis, decerto teria reparado em vós.
  Não, nunca vos falei. Embora o desejasse, andáveis sempre bem acompanhado. Agora, porém, estais só e tristes.
  Como sabeis?
   Sei tudo quanto vos diz respeito!
   Não posso dizer mal do mundo quando criaturas como vós… me dão tanto animo para encarar a má sorte! Mas como voos chamais?
   Tin-Nam. Men. (a Dinamene) que deu origem a estes belos versos de Luís de Camões em os LUSÍADAS:

“Alma minha gentil, que te partiste
 Tão cedo desta vida descontente,
 Repousa lá no Céu eternamente,
 E viva eu cá na terra sempre triste

 Se lá no assento Etéreo, onde subiste,              .
 Memória desta vida se consente,
 Não te esqueças daquele amor ardente,
 Que já nos olhos meus tão puro viste.

 E se vires que pode merecer-te
 Algũa cousa a dor que me ficou
 Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

 Roga a Deus, que teus anos encurtou,
 Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
 Quão cedo de meus olhos te levou.”

Luís Vaz de Camões, in "Sonetos" Canto X . 128
 
 Tin – Nam- Men? Mas é um nome que soa a poesia. Na língua da minha pátria esse nome significa: Porta da Terra do Sul – Porta do Paraíso!
  Senhor, como sabe dizer as coisas!
  O que eu digo depende de quem me inspira. Ides seguir viagem?
  Para vos servir…. Se assim o permitirdes.
  Mas… viestes por mim?
  Sim.

E conta a lenda que durante a viagem da Nau da Prata nasceu um romance de amor entre os dois. Dizia Luís de Camões:
  Tin-Nam-Men, minha suave inspiração! Vou chamar-te Dinamene e hei de consagrar-te os meus versos!
   Senhor, tive um sonho estranho! Via-vos lutando com as ondas do mar segurando esse rolo de papéis que dizeis ser o vosso tesouro…
  São os meus versos… Mas que sonhastes mais?
  Que vos salváveis… e salváveis os vossos versos. Eu, porem…
Tin- Nam- Men calou-se.um trovão forte fez-se ouvir. O vento soprou fortemente. Uma vaga subiu. Nuvens densas pareciam descer sobre a embarcação. E a tempestade surgiu.
A água começou a entrar! O barco está perdido! Temos terra à vista e perto! Quem souber nadar que se lance às ondas! Embarquem as mulheres num batel!
 A jovem beijou as mãos do poeta.
   Meu senhor… adeus
   Não, não digas adeus! Vais no batel e havemos de chegar a terra!
E olhando a jovem disse:
  Encontrar-nos-emos ali, na margem!
   Ou em espírito… na gruta de Patane!
   Não! Fales assim… não me tires a coragem!
  Adeus, meu senhor!
   Adeus!
Luís de Camões deitou-se ao mar. as ondas alterosas subiam a disputar-lhe o manuscrito. De braço no ar, segurando os «LUSÍADAS», Luís de Camões chegou a terra, cansado, abatido, atormentado. Mas o barco onde vinha Tin-Nam-Men não chegou a terra. As ondas tragaram-na para não mais restituírem o seu lindo corpo.
     
FONTE: LENDAS DE PORTUGAL; Gentil Marques: volume V Círculo de leitores

Coimbra, Julho de 2014
Carminda Neves

Para melhor recordar ouçamos alma minha gentil cantada por: de Amália Rodrigues

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