Nasceu a 2 de Julho de 1877, na Alemanha, e morreu a 9 de Agosto de 1962, na Suíça. Distinguido, em 1946, com o Nobel da literatura, tornou-se uma verdadeira figura de culto, uma referência universal ancorada na exaltação que faz do individuo e na celebração de um certo misticismo oriental. Peter
Camenzind, o seu primeiro romance, data de 1904. Uma visita à Índia fê-lo descobrir uma cultura e modos de sentir que o fascinaram:
Siddhartha (1922) foi o resultado prático dessa experiencia, sendo o seu livro mais lido em todo o mundo.
Actualmente, as referências ao Buda referem-se em geral a Siddhartha Gautama, mestre religioso e fundador do Budismo no século VI antes de Cristo. Ele seria, portanto, o último Buda de uma linhagem de antecessores cuja história se perdeu no tempo. Conta a história que ele atingiu a iluminação durante uma meditação sob a árvore Bodhi, quando mudou seu nome para Buda, que quer dizer "iluminado".
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Hermann Hesse |
Suponho que esta obra de Hermann Hesse foi inspirada em toda a vida do primeiro
BUDA. Em toda narrativa o nome da personagem principal é: Siddhartha Gautama.
Durante a Primeira Guerra Mundial, o escritor, refugiou-se na Suíça, país neutro, onde adquiriu a nacionalidade em 1923. Entre os seus romances, incluem-se: O Lobo das Estepes
(1927),
Narciso e Goldmundo (1930) e
O Jogo das Contas de Vidro (1943).
Explorando sempre o dualismo entre a vida activa e a atitude contemplativa, Hermann Hesse é a par de Thomas Mann e Franz Kaflca um dos nomes maiores das letras germânicas do século xx.
Não resisto, e deixo a acompanhar a este pequeno apontamento da vida de Hermann Hesse,
Uma passagem da sua maravilhosa obra,
SIDDHARTHA, (uma das mais belas que já li)
SIDDHARTHA
Na penumbra da casa, ao sol nas margens do rio, junto aos barcos, à sombra do bosque, à sombra das figueiras, cresceu Siddhartha, o belo filho do brâmane, o jovem falcão, na companhia de Govinda, o seu amigo, o filho do brâmane. O sol queimava os seus ombros claros nas margens do rio, durante o banho, durante as abluções sagradas, durante os sacrifícios sagrados. As sombras do mangal corriam pelos seus olhos negros durante as brincadeiras infantis, durante as canções de sua mãe, durante os sacrifícios sagrados, durante os ensinamentos de seu pai, o erudito, durante o discurso dos sábios. Havia já muito tempo que Siddhartha participava nas conversas com os sábios, que treinava com Govinda a retórica, que treinava com Govinda a arte da contemplação, a prática da meditação. Já sabia pronunciar silenciosamente o Om, a palavra das palavras; deixava-o penetrar silenciosamente em si com a inspiração, exalava-o silenciosamente com a expiração, com a totalidade da sua alma, a fronte envolta no brilho do espírito lúcido. Já reconhecia Atman no fundo do seu ser, imperecível, uno com o universo.
Assim Siddhartha era amado por todos. A todos alegrava, a todos tornava felizes.
Mas ele, Siddhartha, não se alegrava, não era feliz
Siddhartha começara a alimentar em si a infelicidade.
Começara a sentir que o amor de seu pai, o amor de sua mãe e o amor do seu amigo Govinda, não o poderiam tornar feliz para todo o sempre, não poderiam apaziguá-lo, saciá-lo, satisfazê---lo. Começara a pressentir que o seu honrado pai e os seus outros mestres já haviam partilhado com ele a maior e melhor parte da sua sabedoria, deitado tudo o que tinham para dentro do recipiente ansioso que ele era, e o recipiente não estava cheio, o espírito não estava satisfeito, a alma não estava aquietada, o coração não estava pacificado. As abluções eram boas, mas eram água, não lavavam os pecados, não saciavam a sede do espírito, não acabavam com os temores do coração. É necessário encontrar a Fonte Primordial no fundo do Eu, possuí-la em nós mesmos! Tudo o resto era demanda, era desvio, era erro.
Estes eram os pensamentos de Siddhartha, esta era a sua sede, esta era a sua dor. Muitas vezes o mundo celestial parecera-lhe perto, mas nunca o conseguira alcançar, nem conseguira saciar a sua derradeira sede.
- Govinda - disse Siddhartha ao seu amigo - , Govinda, vem comigo para debaixo da figueira de – bengala, vamos meditar.
Foram para junto da figueira - de – bengala, sentaram-se no chão, aqui Siddhartha, Govinda afastado vinte passos. Enquanto se sentava, pronto a pronunciar o Om, Siddhartha murmurava os versos:
«Om é o arco, a flecha é a alma,
O Braman é o alvo da flecha,
O alvo que devemos atingir»,
Quando o tempo habitual da meditação se esgotou, Govinda ergueu-se.
À noite depois da hora da contemplação, Siddhartha disse a Govinda:
- Amanhã cedo, meu amigo, Siddhartha irá ter com os samanas. Siddhartha tornar-se-á um samana.
Govinda empalideceu, ao ouvir estas palavras, e no rosto imóvel do seu amigo leu a determinação, impossível de desviar do seu curso como a flecha lançada por um arco.
- Siddhartha – exclamou – irá teu pai permitir-te tal?
Siddhartha entrou na câmara onde estava seu pai, sentado sobre uma esteira de ráfia;
Colocou-se atrás de seu pai e ficou de pé, até este sentir que alguém estava atrás dele. Falou o brâmane:
- És tu, Siddhartha? Diz, então, aquilo que tens para dizer.
Disse Siddhartha:
- Com a tua permissão, meu pai. Vim para te dizer que é meu desejo deixar a tua casa, amanhã, e juntar-me aos ascetas. Tornar-me um samana, esse é o meu desejo. Espero que o meu pai não se oponha.
O brâmane ficou silencioso, permaneceu silencioso por tanto tempo que na pequena janela as estrelas se deslocaram e a sua configuração se alterou, antes que o silêncio na câmara chegasse ao fim. O filho permaneceu de pé, com os braços cruzados, mudo e imóvel, o pai permaneceu sentado sobre a esteira, mudo e imóvel, e as estrelas cruzaram o céu. Então o pai falou:
- Não quero ouvir tal pedido, uma segunda vez da tua boca.
Lentamente, o brâmane ergueu-se; Siddhartha continuava silencioso e de braços cruzados.
- Por que esperas? – Perguntou o pai.
Disse Siddhartha:
- Tu o sabes.
Indignado, o pai saiu da câmara. Indignado, dirigiu-se ao seu leito e deitou-se.
Uma hora mais tarde, porque o sono não vinha aos seus olhos, o brâmane levantou-se, caminhou para trás e para diante, saiu de casa. Olhando através da pequena da câmara viu Siddhartha, de pé, com os braços cruzados, imóvel. O seu trajo claro resplandecia de brancura. Com o coração inquieto, o pai voltou para o seu leito.
Uma hora mais tarde voltou, viu Siddhartha, imóvel, com os braços cruzados.
E voltou uma hora mais tarde, e voltou duas horas mais tarde. E voltou a cada hora que passou, silencioso, olhou para a câmara, viu o homem de pé, imóvel, encheu o seu coração de ira, encheu o seu coração de inquietação, encheu o seu coração de medo, encheu o seu coração de dor.
E na última hora da noite, antes do início do dia, voltou, entrou na câmara, viu o jovem em pé, que lhe pareceu grande e distante.
- Siddhartha – disse ele -, porque esperas?
- Tu o sabes.
- Quererás tu esperar em pé, até chegar o dia, a tarde, a noite?
- Esperarei, de pé
- Ficarás cansado, Siddhartha.
- Ficarei cansado.
- Adormecerás, Siddhartha.
- Não adormecerei.
- Morrerás, Siddhartha.
- Morrerei.
- E preferes morrer, a obedecer a teu pai?
- Siddhartha obedeceu sempre a seu pai.
- Estarás disposto a renunciar ao teu propósito?
- Siddhartha fará o que o seu pai lhe disser.
O primeiro brilho do dia caiu na câmara. O brâmane viu que os joelhos de Siddhartha tremiam ligeiramente. Mas no rosto de Siddhartha não viu qualquer tremor; ao longe brilhavam os seus olhos. Então o pai compreendeu que Siddhartha já não se encontrava junto a ele, na sua terra, que já o tinha deixado.
O pai tocou o ombro de Siddhartha.
- Tu queres – disse ele -, ir para a floresta e ser um samana. Se encontrares a bem – aventurança na floresta, volta e ensina – me a bem – aventurança. Se encontrares a desilusão, então volta e voltaremos a oferecer sacrifícios aos deuses juntos.
Ao deixar a cidade ainda adormecida, à primeira luz da manhã, com as pernas entorpecidas, ergueu – se da última cabana uma sombra, que ali estava acocorada, e aproximou – se do peregrino – Govinda.
- Vieste – disse Siddhartha, sorrindo.
- Vim – disse Govinda.
Fonte
HESSE, Hermann; Siddhartha, primeira parte; págs 11a 20
Edição: 13ª. Editora: Casa das Letras/ Editurial Noticias
Coimbra, Julho
Carminda Neves