terça-feira, 31 de março de 2015

LENDA DOS TRIPEIROS



    Naquele dia de mil quatrocentos e quinze, o sol nascia sobre o rio Douro com uma estranha luminosidade. E nas margens do rio tudo se transformara num arsenal. Arsenal gigante, onde se construíam naus e barcos para uma grande aventura marítima. Aventura rodeada de mistério…

    Por isso mesmo, por nada se saber ao certo, os boatos multiplicavam-se, chocavam entre si, tomando por vezes foros de revelações sensacionais. E assim, nessa manhã bonita e estranha, Mestre Vaz e um dos seus ajudantes, o moço Simão, trocavam ideias e palpites, perante a atenção curiosa dos que os rodeavam.
       Pois é como lhes digo, rapazes! Estou certo que tudo isto é para levar a Senhora Infanta Dona Isabel até Inglaterra, onde vai casar…
   E Mestre Vaz olhava os circunstantes num olhar de desafio, como se ninguém pudesse pôr em dúvida a sua afirmação. Mas enganou-se. Simão, o jovem Simão não concordava.
      Ora, Mestre Vaz, não diga semelhante coisa… Cá por mim, já sei: esta armada que estamos a preparar servirá para levar el-rei, o Senhor D. João I, a Jerusalém, a fim de cumprir a promessa de visitar o Santo Sepulcro.
  Mestre Vaz sorriu. Sorriso alegre, mas irónico.
      A quem o dizes!... Eras tu garoto ainda… ou nem sequer tinhas nascido… quando o nosso rei fez essa promessa, se vencesse Castela…
   E enchendo o peito de ar, e olhando profundamente para todos, Mestre Vaz concluiu, alteando a voz:
    E o nosso rei venceu! Vencemos… porque eu também estive lá!
    O quê? Mestre Vaz também foi nessa armada?
     Sim jovem Simão… Aqui onde me vês, tenho lutado muito por esse mundo de Cristo…
E rindo-se disse:
     Todos têm ainda de aprender muito comigo…
Fez-se silêncio.
Simão cortou-o.
    Ora, desta vez não vamos para a guerra.
Mestre Vaz olhou-o demoradamente. Intencionalmente e disse:
  Sabe-se lá Simão sabe-se lá… olhou o sol, deu um grito de alarme:
   Eh rapazes. Vamos ao trabalho.
E todos se atiraram à sua faina na ansia de não perder o tempo…
Mestre Vaz e Simão só voltaram a encontrar-se à hora do almoço.
   Olha, aí vem a tua mãe Simão.
    Já a tinha visto, Mestre Vaz… obrigado. E vem com cara de quem traz novidades.
O outro riu-se.
     Até parece que nem conheces a tua mãe… Nunca se viu a Senhora Joana sem novidades para contar…
    Como? Que dizeis vós? Então não sabeis ainda o que se conta por aí?
     Ora minha mãe… são rumores com certeza… esta gente só sabe espalhar rumores.
A Senhora Joana revoltou-se.
     Não são rumores, não senhor…
E aproximou-se, com ar de segredo.
Ficai sabendo que esta armada é para ir a Nápoles com os Senhores Infantes D. Pedra e D. Henrique, que ali vão casar… (um dos muitos boatos que surgiram na época)
     E ficou à espera da reação de pasmo dos dois homens. Mas, em vez de pasmo, surgiu a risota.
   O quê, Senhora Joana, logo os dois ao mesmo tempo?
    Pois claro! O Senhor D. Pedro vai casar com a rainha viúva da Cecília. E o Senhor D. Henrique…
   O quê, minha mãe? Então pensa que o Senhor D. Henrique vai casar? ... Oh, mãe, não diga tal coisa!...
  Acabou por ser a mulher a mostrar-se surpreendida.
    E… que tem isso de especial?
Mestre Vaz adiantou-se.
  Oiça, Senhora Joana… Já que quer saber a verdade, não é nada do que pensa. Eu já disse ao seu filho…
    Mas ela não o deixou terminar. Embalada por uma onda de brio ferido, volveu-lhe, irada:
    E o Mestre Vaz tem a mania que sabe tudo, não é verdade? …
Olhe que também se pode enganar…
     O outro abanou a cabeça toda branca.
    Com a idade que tenho, Senhora Joana não é fácil a gente enganar-se…
    Ora se vamos falar de idades, estamos bem servidos, Mestre Vaz!
O jovem Simão viu-se obrigado a intervir.
   Bem, bem… Não se zanguem… Quando se encontram, ficam sempre a caturrar… Vamos ao almoço, que são horas.
   A mulher calou-se e começou a dispor as coisas para o almoço. Por seu turno Mestre Vaz resmungou:
  E é aproveitar, porque temos de comer depressa… isto ainda vai muito atrasado… e dizem que o Senhor Infante D. Henrique vem cá no domingo…

E, de facto, dessa vez não foi boato…
 O Infante D. Henrique apareceu inesperadamente no Porto, para ver o andamento dos trabalhos… (Dá-se como certo. Historicamente, o Infante D. Henrique esteve no Porto todo o mês de janeiro de 1415 para vigiar pessoalmente a construção da frota mandada construir segundo os seus planos)
  Segundo a lenda o Infante D. Henrique entendeu que esforço dos trabalhadores para construir a frota não era suficiente, tinha de ser maior. Mandou chamar Mestre Vaz, que se apresentou sem demora.
    Aqui estou, Senhor Infante… Recebi o vosso recado e vim sem imediatamente.
    Muito me satisfazeis com o vosso zelo, Mestre Vaz. Aproximai-vos.
    Senhor, é assim tão importante o que tendes para me dizer?
Mais do que podereis julgar.
E baixando a voz, o Infante disse:
     O que tenho para vos dizer… é segredo!
     Oh, Senhor Infante… Eu não mereço…
Um breve sorriso desenhou-se no rosto duro de D. Henrique.
    Não tenhais receio escolhi-vos porque sei que sois leal e fiel.
E segregando disse todos esses rumores que por aí correm sobre o destino da armada andam longe da verdade!
   Mestre Vaz abriu a boca para falar, mas calou-se. O Infante fez-lhe sinal para que falasse. E ele confessou:
   Eu tenho calculado isso mesmo, meu Senhor… pareciam-me boatos só para desviar a atenção.
   Tal e qual, velho Mestre, tal e qual!... Mas vós ides saber a verdade.
Só vós, compreendeis bem?... É necessário que não saia desta sala uma única palavra do que vos vou dizer… Em contrapartida, preciso absolutamente que me ajudeis depois com toda a vossa experiência.
   «Como se fizesse um juramento solene, o velho marinheiro garantiu com voz firme e resoluta.
  Contai inteiramente comigo, Senhor Infante!
  Obrigado!
E medindo as palavras o Infante revelou:
Esta armada que estamos a construir destina-se à conquista de Ceuta (foi essa empresa arriscada e meritória que o infante D. Henrique escolheu para se armado cavaleiro, juntamente com seus irmãos D. Duarte e D. Pedro.)
  O meu grande sonho vai finalmente concretizar-se, Metre Vaz… Nós conquistaremos Ceuta. El-rei meu pai consente que partamos!
   O velho marinheiro persignou-se.
      Que Deus vos oiça, Senhor Infante D. Henrique.
  Houve uma nova pausa entre os dois…
O Infante olhou bem de frente o velho marinheiro de cabelos brancos.
    Agora, mais do que nunca, preciso de vós e de todos os homens experientes e dedicados, como vós, Mestre Vaz! É necessário fazer sacrifícios ainda maiores… Percebeis o que quero dizer?
  Percebo, sim, Senhor Infante! Quereis que trabalhemos noite e dia, sem cessar… para a frota estar pronta a partir de uma certa data…
  Isso mesmo Mestre Vaz!... Eu desejo que a armada esteja pronta a partir dos primeiros dias de Julho. Para isso será necessário um esforço quase sobre-humano (o desejo do Infante realizou-se a armada entrou no tejo na manhã do dia 10 de julho)
    Pois faremos esse esforço, Senhor!... Pelo reino, por el-rei e por vós…
    E também pela cidade do Porto… Eu vos juro que faremos esse esforço!  
    Como sabe bem ouvir essas palavras Mestre Vaz!
    Digo-vos mais, Senhor Infante, se mo permitis… Faremos agora o que fizemos há precisamente 30 anos, quando daqui abalou a frota comandada por D. Rui Pereira, para ir auxiliar el-rei, vosso pai e nosso Senhor, contra os inimigos vindos de Castela… (batalha de Aljubarrota?) Então, nós, Senhor Infante, decidimos dar toda a carne para mantimentos e comermos apenas as tripas que iam ficando… Por isso mesmo, até passaram a chamar-nos «tripeiros».
     Somos «tripeiros», sim, e com muita honra!
    Oque me contais Mestre Vaz é na verdade extraordinário, Mestre Vaz! Tendes razão… Esse nome de tripeiros, por sacrifício tão nobre e tão alto, é sem dúvida uma verdadeira honra para os homens do Porto. Bem vos podeis orgulhar de serdes tripeiros!
    Pois, Senhor Infante, agora o será de novo, para que toda a carne que pudermos arranjar siga também na armada, a caminho da grande vitória de Ceuta.
   Dizeis bem, Mestre Vaz!... A caminho da grande vitória de Ceuta!

Daí em diante, segundo nos conta a velhíssima lenda, Mestre Vaz, sem revelar, nunca, o segredo que lhe foi confiado, não se cansou de apregoar a mesma ideia, a todas as gentes da cidade do Porto.
  É o que vos digo, companheiros! Temos de nos sacrificar de novo para honra do nosso reino e para a honra da nossa cidade do Porto! Tal como nos chamaram tripeiros há 30 anos, poderão agora chamar-nos tripeiros para sempre. Nós guardaremos esse título com altivez!
    As suas palavras foram escutadas e repetidas. Transformaram-se num lema. Numa bandeira de compreensão. Acorreram adesões de todos os lados.
   Seja qual for o nosso destino, se o Senhor Infante precisa de nós, nós estaremos com ele!
   Mestre Vaz gritava agradecendo a todos que acorriam ao seu chamado:
    Viva a gente do Porto! Viva o Povo Tripeiro!

E tal com a nossa História narra, mercê do invulgar sacrifício dos heroicos Tripeiros, de facto, no dia 10 de julho de 1415, fundeava em Lisboa a grande frota do Infante D. Henrique, com as suas sete galés e as suas vinte naus, a caminho da conquista de Ceuta…

 FONTE: LENDAS DE PORTUGAL VOLUME 2; Gentil Marques: Circulo e Leitores,

Coimbra, Março de 2015
Carminda Neves








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