Naquele dia de mil quatrocentos e quinze, o
sol nascia sobre o rio Douro com uma estranha luminosidade. E nas margens do
rio tudo se transformara num arsenal. Arsenal gigante, onde se construíam naus
e barcos para uma grande aventura marítima. Aventura rodeada de mistério…
Por isso mesmo, por nada se saber ao certo,
os boatos multiplicavam-se, chocavam entre si, tomando por vezes foros de
revelações sensacionais. E assim, nessa manhã bonita e estranha, Mestre Vaz e
um dos seus ajudantes, o moço Simão, trocavam ideias e palpites, perante a
atenção curiosa dos que os rodeavam.
Pois é como lhes digo, rapazes! Estou
certo que tudo isto é para levar a Senhora Infanta Dona Isabel até Inglaterra,
onde vai casar…
E Mestre Vaz olhava os circunstantes num
olhar de desafio, como se ninguém pudesse pôr em dúvida a sua afirmação. Mas
enganou-se. Simão, o jovem Simão não concordava.
Ora, Mestre Vaz, não diga semelhante
coisa… Cá por mim, já sei: esta armada que estamos a preparar servirá para
levar el-rei, o Senhor D. João I, a Jerusalém, a fim de cumprir a promessa de
visitar o Santo Sepulcro.
Mestre Vaz sorriu. Sorriso alegre, mas
irónico.
A quem o dizes!... Eras tu garoto ainda…
ou nem sequer tinhas nascido… quando o nosso rei fez essa promessa, se vencesse
Castela…
E enchendo o peito de ar, e olhando
profundamente para todos, Mestre Vaz concluiu, alteando a voz:
E o nosso rei venceu! Vencemos… porque eu
também estive lá!
O quê? Mestre Vaz também foi nessa armada?
Sim jovem Simão… Aqui onde me vês, tenho
lutado muito por esse mundo de Cristo…
E
rindo-se disse:
Todos têm ainda de aprender muito comigo…
Fez-se
silêncio.
Simão
cortou-o.
Ora, desta vez não vamos para a guerra.
Mestre
Vaz olhou-o demoradamente. Intencionalmente e disse:
Sabe-se lá Simão sabe-se lá… olhou o sol, deu
um grito de alarme:
Eh rapazes. Vamos ao trabalho.
E
todos se atiraram à sua faina na ansia de não perder o tempo…
Mestre
Vaz e Simão só voltaram a encontrar-se à hora do almoço.
Olha, aí vem a tua mãe Simão.
Já a tinha visto, Mestre Vaz… obrigado. E
vem com cara de quem traz novidades.
O
outro riu-se.
Até parece que nem conheces a tua mãe…
Nunca se viu a Senhora Joana sem novidades para contar…
Como? Que dizeis vós? Então não sabeis
ainda o que se conta por aí?
Ora minha mãe… são rumores com certeza…
esta gente só sabe espalhar rumores.
A
Senhora Joana revoltou-se.
Não são rumores, não senhor…
E
aproximou-se, com ar de segredo.
Ficai
sabendo que esta armada é para ir a Nápoles com os Senhores Infantes D. Pedra e
D. Henrique, que ali vão casar… (um dos muitos boatos que surgiram na época)
E ficou à espera da reação de pasmo dos
dois homens. Mas, em vez de pasmo, surgiu a risota.
O quê, Senhora Joana, logo os dois ao mesmo
tempo?
Pois claro! O Senhor D. Pedro vai casar com
a rainha viúva da Cecília. E o Senhor D. Henrique…
O quê, minha mãe? Então pensa que o Senhor
D. Henrique vai casar? ... Oh, mãe, não diga tal coisa!...
Acabou por ser a mulher a mostrar-se
surpreendida.
E… que tem isso de especial?
Mestre
Vaz adiantou-se.
Oiça, Senhora Joana… Já que quer saber a
verdade, não é nada do que pensa. Eu já disse ao seu filho…
Mas ela não o deixou terminar. Embalada por
uma onda de brio ferido, volveu-lhe, irada:
E o Mestre Vaz tem a mania que sabe tudo,
não é verdade? …
Olhe
que também se pode enganar…
O outro abanou a cabeça toda branca.
Com a idade que tenho, Senhora Joana não é
fácil a gente enganar-se…
Ora se vamos falar de idades, estamos bem
servidos, Mestre Vaz!
O
jovem Simão viu-se obrigado a intervir.
Bem, bem… Não se zanguem… Quando se
encontram, ficam sempre a caturrar… Vamos ao almoço, que são horas.
A mulher calou-se e começou a dispor as
coisas para o almoço. Por seu turno Mestre Vaz resmungou:
E é aproveitar, porque temos de comer
depressa… isto ainda vai muito atrasado… e dizem que o Senhor Infante D.
Henrique vem cá no domingo…
E,
de facto, dessa vez não foi boato…
O Infante D. Henrique apareceu inesperadamente
no Porto, para ver o andamento dos trabalhos… (Dá-se como certo.
Historicamente, o Infante D. Henrique esteve no Porto todo o mês de janeiro de
1415 para vigiar pessoalmente a construção da frota mandada construir segundo
os seus planos)
Segundo a lenda o Infante D. Henrique
entendeu que esforço dos trabalhadores para construir a frota não era
suficiente, tinha de ser maior. Mandou chamar Mestre Vaz, que se apresentou sem
demora.
Aqui estou, Senhor Infante… Recebi o vosso
recado e vim sem imediatamente.
Muito me satisfazeis com o vosso zelo,
Mestre Vaz. Aproximai-vos.
Senhor, é assim tão importante o que tendes
para me dizer?
Mais
do que podereis julgar.
E
baixando a voz, o Infante disse:
O que tenho para vos dizer… é segredo!
Oh, Senhor Infante… Eu não mereço…
Um
breve sorriso desenhou-se no rosto duro de D. Henrique.
Não tenhais receio escolhi-vos porque sei
que sois leal e fiel.
E
segregando disse todos esses rumores que por aí correm sobre o destino da
armada andam longe da verdade!
Mestre Vaz abriu a boca para falar, mas
calou-se. O Infante fez-lhe sinal para que falasse. E ele confessou:
Eu tenho calculado isso mesmo, meu Senhor…
pareciam-me boatos só para desviar a atenção.
Tal e qual, velho Mestre, tal e qual!... Mas
vós ides saber a verdade.
Só
vós, compreendeis bem?... É necessário que não saia desta sala uma única
palavra do que vos vou dizer… Em contrapartida, preciso absolutamente que me
ajudeis depois com toda a vossa experiência.
«Como se fizesse um juramento solene, o
velho marinheiro garantiu com voz firme e resoluta.
Contai inteiramente comigo, Senhor Infante!
Obrigado!
E
medindo as palavras o Infante revelou:
Esta
armada que estamos a construir destina-se à conquista de Ceuta (foi essa
empresa arriscada e meritória que o infante D. Henrique escolheu para se armado
cavaleiro, juntamente com seus irmãos D. Duarte e D. Pedro.)
O meu grande sonho vai finalmente
concretizar-se, Metre Vaz… Nós conquistaremos Ceuta. El-rei meu pai consente
que partamos!
O velho marinheiro persignou-se.
Que Deus vos oiça, Senhor Infante D.
Henrique.
Houve uma nova pausa entre os dois…
O
Infante olhou bem de frente o velho marinheiro de cabelos brancos.
Agora, mais do que nunca, preciso de vós e
de todos os homens experientes e dedicados, como vós, Mestre Vaz! É necessário
fazer sacrifícios ainda maiores… Percebeis o que quero dizer?
Percebo, sim, Senhor Infante! Quereis que
trabalhemos noite e dia, sem cessar… para a frota estar pronta a partir de uma
certa data…
Isso mesmo Mestre Vaz!... Eu desejo que a
armada esteja pronta a partir dos primeiros dias de Julho. Para isso será
necessário um esforço quase sobre-humano (o desejo do Infante realizou-se a
armada entrou no tejo na manhã do dia 10 de julho)
Pois faremos esse esforço, Senhor!... Pelo
reino, por el-rei e por vós…
E também pela cidade do Porto… Eu vos juro
que faremos esse esforço!
Como sabe bem ouvir essas palavras Mestre
Vaz!
Digo-vos mais, Senhor Infante, se mo
permitis… Faremos agora o que fizemos há precisamente 30 anos, quando daqui
abalou a frota comandada por D. Rui Pereira, para ir auxiliar el-rei, vosso pai
e nosso Senhor, contra os inimigos vindos de Castela… (batalha de Aljubarrota?)
Então, nós, Senhor Infante, decidimos dar toda a carne para mantimentos e
comermos apenas as tripas que iam ficando… Por isso mesmo, até passaram a chamar-nos
«tripeiros».
Somos «tripeiros», sim, e com muita honra!
Oque me contais Mestre Vaz é na verdade
extraordinário, Mestre Vaz! Tendes razão… Esse nome de tripeiros, por
sacrifício tão nobre e tão alto, é sem dúvida uma verdadeira honra para os
homens do Porto. Bem vos podeis orgulhar de serdes tripeiros!
Pois, Senhor Infante, agora o será de novo,
para que toda a carne que pudermos arranjar siga também na armada, a caminho da
grande vitória de Ceuta.
Dizeis bem, Mestre Vaz!... A caminho da
grande vitória de Ceuta!
Daí
em diante, segundo nos conta a velhíssima lenda, Mestre Vaz, sem revelar,
nunca, o segredo que lhe foi confiado, não se cansou de apregoar a mesma ideia,
a todas as gentes da cidade do Porto.
É o que vos digo, companheiros! Temos de nos
sacrificar de novo para honra do nosso reino e para a honra da nossa cidade do
Porto! Tal como nos chamaram tripeiros há 30 anos, poderão agora chamar-nos
tripeiros para sempre. Nós guardaremos esse título com altivez!
As suas palavras foram escutadas e
repetidas. Transformaram-se num lema. Numa bandeira de compreensão. Acorreram
adesões de todos os lados.
Seja qual for o nosso destino, se o Senhor
Infante precisa de nós, nós estaremos com ele!
Mestre Vaz gritava agradecendo a todos que
acorriam ao seu chamado:
Viva
a gente do Porto! Viva o Povo Tripeiro!
E
tal com a nossa História narra, mercê do invulgar sacrifício dos heroicos
Tripeiros, de facto, no dia 10 de julho de 1415, fundeava em Lisboa a grande
frota do Infante D. Henrique, com as suas sete galés e as suas vinte naus, a
caminho da conquista de Ceuta…
FONTE: LENDAS DE PORTUGAL VOLUME 2; Gentil
Marques: Circulo e Leitores,
Coimbra,
Março de 2015
Carminda
Neves
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