Eram quase três
da tarde em Badajoz naquele dia 13 de Fevereiro de 1965. O general Humberto
Delgado e a sua secretária, Arajaryr Campos, encontravam-se na estação de
comboios e ele, mesmo sem haver sol, encontrava-se de óculos escuros e com um
cachecol a tapar-lhe quase todo o rosto. A grande figura da oposição ao Estado
Novo estava prestes a partir para uma reunião que julgava determinante para
derrubar o regime. A ansiedade já devia ser grande quando viram aproximar-se o
homem que haviam conhecido apenas umas horas antes, "o Dr. Castro e Sousa" Ernesto Lopes Ramos (seu nome verdadeiro).
Cumprimentaram-se, saíram discretamente da plataforma e, fora do edifício,
encaminharam-se para o Renault Caravelle que o homem estacionara ali perto.
Delgado sentou-se ao lado do condutor. Atrás, a sua secretária brasileira
tentou atenuar o ambiente tenso, com conversa de circunstância.
A tensão era
facilmente explicável: dirigiam-se a uma reunião secreta com um grupo de
oficiais do Exercito Português que prometiam apoiar o General num golpe contra
o governo de António Oliveira Salazar. Pela estrada entre campos não passava
vivalma. Ao fim de alguns quilómetros a secretária anunciou o que todos
desejavam: avistara um carro verde! Um pouco atrás, fora da estrada.
Entusiasmado Delgado confirmou ter visto um Opel Record verde-escuro,
exatamente igual ao que o Dr. Castro e Sousa dissera pertencer ao coronel com
quem se iam encontrar. O Renault fez marcha atrás, parou, arrancou, saiu da
estrada e entrou por um caminho de terra batida. Adiante uns homens
esperavam-nos. Uma pequena clareira protegida por um cerro parecia o cenário
quase perfeito para um encontro secreto.
Logo que o
carro parou, Humberto Delgado saiu e dirigiu-se ao coronel. Este começou a avançar
em sua direção. Coxeava um pouco. Foi então que tudo se precipitou: Delgado viu
aproximar-se um homem enorme de gabardina branca. A aparência não permitia
dúvidas: não se tratava de um oficial do Exercito Português. Delgado interpelou
o desconhecido, mas já era demasiado tarde, a última imagem que terá visto foi
o olhar do homem que o assassinou a tiro, Casimiro Monteiro, chefe de brigada
da polícia política do regime, a PIDE. O Dr. Castro e Sousa, que o conduzira à
cilada, era o subinspetor Ernesto Lopes Ramos, que tivera o apoio do chefe de
brigada Agostinho Tienza.
A PIDE
eliminara o mais perigoso opositor ao regime. O “coronel que coxeava” (o
inspetor Rosa Casaco) ordenou logo que matassem a secretária que estava aos
gritos. O seu corpo foi atirado para junto do de Delgado, na mala do Opel
verde-escuro.
Casimiro
Monteiro entrou na História de Portugal deste medonho modo, com o crime de
Badajoz. Porém, a sua história começou a muitos milhares de quilómetros de distância
dali, a 28 de Dezembro de1920 em Goa India localidade onde nasceu.
SEMINARISTA,
DESERTORE LEGIONÁRIO
Casimiro Emérito Rosa Teles Jordão Monteiro era
descendente de Joaquim Teles Jordão, brigadeiro, que no século XIX fora um
absolutista fervoroso, lutou ao lado de D. Miguel na guerra civil contra os
liberais. Foi um dos governadores da, então, infame Torre de S. Julião da Barra,
que funcionava como prisão e palco de torturas. A sua reputação era tal que
quando foi preso e reconhecido em Cacilhas, o executaram imediatamente. O pai
de Casimiro, José Teles Jordão Monteiro, nasceu em Valpaços, seguiu a carreira
militar. (tradição familiar) Chegou a 2º sargento e foi destacado para a India,
onde casou com Maria Alves Castro, tiveram sete filhos sendo Casimiro o mais
novo.
Quando completou
a escola primária entro para o seminário, mas não tardou a aborrecer-se. Trocou
a batina pela farda e deu-se como voluntário para o Exercito Português, mas
também se cansou, a disciplina não era para ele. Desertou, escapou para a
India, então colónia Britânica.
De navio,
fugiu para Marrocos onde ironicamente volta a envergar uma farda, a da legião
Espanhola. Um porto de abrigo para fugitivos. Do Norte de África seguiu para a
Europa. Em 1938, a guerra civil Espanhola precisava de todos os homens válidos.
Quando nesse ano foi feita uma lista com os nomes de todos estrangeiros
presentes naquele corpo militar, o seu apareceu entre os 70 portugueses que
treinavam na bandeira de depósito. Um dia sem mais explicações enfiaram-nos num
camião e enviados para a linha da frente na sangrenta batalha do Ebro. O
assassino de Humberto Delgado tinha 18 anos.
RAPTOS E VIOLAÇÕES
Depois da
guerra ficou por Espanha, fixou residência em Barcelona. Em 1941, vários dos
seus amigos e camaradas alistarem-se na divisão azul (unidade falangista que
iria lutar contra a união soviética a favor de Hitler). Enquanto esses homens
juravam fidelidade a Hitler, Casimiro Monteiro envolveu-se em sarilhos. Preso,
foi conduzido ao posto de Vilar Formoso e entregue à PVDE em 1941 (antecessora
da PIDE). Ficou detido durante duas semanas. Libertado, viveu em Lisboa
discretamente para reaparecer em 1943 em Inglaterra a trabalhar como talhante,
tendo casado com Della King, com quem teve2 filhos. Tinha um part-time como informador da Scotlad
Yard, rapidamente passou de informador a cúmplice dos criminosos. Tornou-se
membro de uma quadrilha de assaltantes acabou por ser preso e condenado a 18
meses de prisão. A mulher abandonou-o e levou os filhos.
Em liberdade
levou uma vida errática, sem residência fixa e envolvido em negócios obscuros.
Assumiu uma identidade falsa (Emmer Ullah) supostamente filho de um
paquistanês. Em 1950 com a nova identidade obteve nacionalidade Britânica.
Tinha construído toda uma personagem, faltava-lhe uma companheira à altura,
encontrou-a na pessoa de Joan Raymond de nacionalidade inglesa. Tornaram-se
companheiro na farsa que Casimiro montara, iniciaram uma vida dupla em que
Emmer andava em viagens de negócios entre Londres e a India.
Em Outubro de 1952 foi implicado num assalto
a uma ourivesaria que correu mal um dos empregados foi assassinado. A polícia
tentou prende-lo, mas ele fugiu para Bombaim, com Joan e um filho que nascera
entretanto. Desta cidade foi para Goa.
No retorno à
terra natal, voltou à sua verdadeira identidade. Casimiro ressurgiu. A mulher
continuou a chamar-se Joan com o apelido Ullan, só que não foi adquirido pelo
casamento falso, mas herdado do pai, passou a ser uma inglesa nascida em
Calcutá.
O DEMÓNIO DE NARAKASSUR
Graças às suas
ligações na sociedade Goesa conseguiu evitar ser punido pela deserção do
Exercito, anos antes. Terá narrado a sua vida com feitos gloriosas durante a
guerra. Explorou uma concessão mineira com poucos lucros, até 1953.
Apresentou-se para lutar contra o movimento
goês que contestava a soberania portuguesa. Em 1954 foi integrado como agente
de 2ª classe na Polícia do Estado da India, onde seu irmão Aníbal já servia.
Dois anos mais tarde foi louvado pela sua atuação numa operação onde foram
capturadas armas roubadas e abortado um atentado bombista. Promovido a chefe de
brigada, em 1958 era considerado um dos melhores elementos da luta contra os
“terroristas”. Mas entre a população era conhecido por cometer toda a espécie
de crimes.
Em 1958 estava
no auge da sua carreira. Vivia com Joan e os dois filhos numa doa casa e com
uma fortuna que aumentava exponencialmente. Mas quando fez uma viagem a Lisboa
acompanhado pela família, foi denunciado, por alguém que o conhecia bem, porque
não só referiu, os seus crimes cometidos na India, como como também o seu
passado como assaltante no Reino Unido. Quando um dia passeava na Trafaria, foi
interpelado pela polícia, e preso. Entrou na cadeia do Aljube a 22 de Outubro
de 1958, quatro meses depois das eleições a que Delgado se candidatou.
Em Goa foi aberto um inquérito aos seus crimes, a pouco e
pouco, as vítimas foram-se apresentando, para relatar o que haviam sofrido. Em
poucos dias havia 72 testemunhas entre elas, havia subordinados que delataram a
atividade criminosa de Casimiro. Dizendo-se alvo de ameaças de morte e
acusando-o de se ter apropriado de contrabando apreendido. A lista de crimes de
que iria ser acusado incluía: homicídio,
extorsão, rapto, violação, sevicias, abuso de confiança, agressão, abuso de
autoridade, usurpação de terreno, contrabando, destruição de propriedade,
apreensões em proveito próprio de armas, munições e produtos de contrabando.
Foi também mencionada uma apreensão feita durante o carnaval de 1957, várias
barras de ouro foram confiscadas a três contrabandistas e entregues ao chefe de
brigada Monteiro que nunca as depositou.
Pior que tudo, a sua violência era
constante, justificando um elevado Nº de mortes sempre da mesma forma “o suspeito tentou fugir”. Concluído o
relatório foi enviado para o ministro do ultramar- com cópia para o próprio
Salazar- salientando que em Goa. “Falar-se em Casimiro Monteiro era o mesmo que
falar-se no diabo”
Na empresa Goesa
a sua queda foi saudada como o fim de um reinado de terror. Para evitar o seu
nome era mencionado como: o demónio de
Narakassur, que na mitologia hindu lança a morte sobre os humanos. Casimiro
enfrentava a perspetiva de passar muito tempo atrás das grades. Mas, contra
todas as expetativas, tirou partido da situação e aproveitou o tempo passado
entre os presos para os espiar e se tornar informador da polícia secreta.
DE PRESO A TERRORISTA. DE TERRORISTA A
PIDE
A 15 de Abril de 1959 foi transferido
para a Casa de Reclusão do Governo Militar de Lisboa. Solto pouco depois, ficou
a aguardar julgamento em liberdade, impedido de voltar a Goa. Mas a partir de
sua casa em Queluz, começou uma campanha para limpar o seu nome e denegrir os
seus acusadores do Estado da India. O seu irmão Aníbal também se envolveu nessa
campanha, mas acabou por ser preso e expulso da corporação por ter forjado
documentação falsa contra os seus superiores e o próprio governador- geral.
Apesar de
todas as provas contra Casimiro a PIDE começou a intervir no sentido de
desacreditar as acusações. Em dezembro de 1961 a Índia invadiu e anexou Goa,
Damão e Diu ao seu território, colocando em causa muitos dos elementos da
acusação, quando em Dezembro de 1963 foi presente ao tribunal de Santa Clara
foi absolvido.
Em 1964 tentou
ser reintegrado nos quadros da polícia portuguesa com o seu antigo posto,
obtendo apenas indiferença para o seu pedido. Mas pelas mesmas razões que lhe
recusavam um posto na polícia em Portugal, foi recrutado por Hermes de Oliveira e enviado numa
missão secreta a Goa Operação Mamasté. O
objetivo era lançar o caos no território e abalar a anexação indiana.
No antigo
território português, além de organizar atentados à bomba e espalhar o terror,
aproveitou para fazer alguns ajustes de contas. Mas viu-se forçado a fugir.
A PIDE tinha
tomado nota da sua ação na Índia: além de informador, Casimiro revelara
talentos especiais que podiam ser de utilidade. Não tinha a escolaridade mínima
nem o cadastro limpo que a PIDE exigia aos seus chefes de brigada, mas isso não
foi um entrave na hora de o admitir no seu antigo posto. Barbieri Cardoso, seu
padrinho na instrução, levou-o para a Divisão de Informação numa época em que a
PIDE andava entusiasmada com o golpe que preparava há dois anos.
A Operação
Outono estava para ser posta em prática e Casimiro Monteiro era o elemento que
faltava para completar a brigada especial, o assassino implacável que deveria
liquidar o General Humberto Delgado. Fê-lo com eficácia, mas ele e os cúmplices
revelaram-se amadores ao esconder os cadáveres e as provas do duplo homicídio.
O envolvimento da PIDE era evidente e a imprensa internacional apontou o dedo
ao Estado Novo. Para Casimiro Monteiro, nada disso já interessava: em Abril de
1965 foi colocado em Moçambique.
UM BULLDOG À SOLTA EM ÁFRICA
Em Fevereiro de 1968, Eduardo Mondlane dirigiu-se ao
escritório da Frelimo na capital da Tanzânia para recolher correspondência.
Saiu com uma encomenda especial, julgava ser um livro. Ao abrir o pacote
acionou uma bomba que lhe decepou as mãos e cortou o tronco em duas partes. O
governo português negou qualquer envolvimento no assassinato.
Mas não tardou
muito para surgirem as ligações entre o assassino de Mondlane e o homem que
matou Humberto Delgado, Casimiro Monteiro, para isso teve a colaboração de
Lázaro Nkavandame e Silvério Nungu, elementos da Frelimo com acesso ao
presidente do movimento.
Para Casimiro
Monteiro, Moçambique era o território perfeito, não tardou muito que ganhasse
entre as suas vítimas a mesma fama que tinha em Goa. Óscar Cardoso um agente
que com ele privou, testemunhou a sua eficiência, descrevendo-o como um” bulldog.
Dizia-se-lhe, faz e ele fazia,” resolvia as coisas à catanada.
Em 1970 foi
promovido a subinspetor, mas o 25 de Abril fez desabar o seu mundo. Fugiu para
a África do Sul, onde os anos finais da sua vida não terão sido fáceis. Óscar
Cardoso contou que, quando o encontrou em Richads Bay vivia do apoio da polícia
Sul-Africana. Morreu em Janeiro de 1993. Quase cego e na miséria.
ORIGEM: Revista
Sábado, 2 de Outubro de 2014. Por Ricardo Silva
Coimbra, Outubro de 2014
Carminda Neves