Encostado à janela da sua alcova nos paços de Coimbra, D.
Sancho II olha sem ver o aspaço que a noite toldou. Está realmente escuro.
Muito escuro. Negro e frio o ambiente lá fora. Dentro dos paços de Coimbra,
porém, não sente menos frio o rei português. Tão acabrunhado se encontra, que
nem dá pela presença de sua esposa, D. Mécia Lopes. Ela caminha para ele. Tem
um lave trejeito ao vê-lo inclinado para o exterior, como se quisesse perguntar
à noite escura a razão de lhe quererem roubar o que de legitimo lhe pertence- o
seu trono! (D. Sancho II foi deposto por seu irmão D. Afonso III conde de
Bolonha) Como o rei continuava envolto nos seus pensamentos tristes, é ela quem
fala:
Senhor!
Esqueceis-vos que é tempo de descansarmos?
Ele voltou-se, apanhado de surpresa. Ela sorri-lhe.
Então que
pensais com tanto afinco?
O rei respondeu com voz cansada:
Acaso ignorais
que me preocupa a guerra civil?
A rainha faz um trejeito desdenhoso.
Que ironia a
vossa senhor! Uma guerra civil não poderá amachucar-vos mais do que as outras
em que vos empenhastes com os Mouros…
O rei confessa:
Esta guerra que
meu irmão ateou ao reino é bem mais dolorosa para mim. É certo que tenho bons
cavaleiros e o povo do meu lado. Mas os outros… porque preferem Afonso. (O
clero com o apoio do Papa deram a vitória a D. Afonso III. D. Sancho II não
pagava ao Papa “os impostos”. D. Afonso assim que se apanhou no poder fez-lhe o
mesmo.)
A rainha encolheu
os ombros.
Perguntai-lhes!...
Ele enerva-se.
Vós não sofreis
a minha dor! E bem sabeis o que fizeram para nos separar.
Ora senhor!
Vosso irmão não deseja que tenhais filhos, para que ele suba normalmente ao
trono… que há muito cobiça!
Não faram só os
partidários de meu irmão que intentaram contra nós.
Não?
Bem o sabeis…
Dizei os nomes,
senhor!
D. Gentil
Marques, por exemplo!
Mais…
D. Martim de
Freitas (alcaide do castelo de Coimbra…)
Ela ri, um tanto nervosa.
De que vos ris,
Senhora?
Do próprio
destino! Dizei a Martim de Freitas e a Gentil Martins… que descansem. Eu não
poderei perturbar-vos por muito tempo…
O rei alarma-se:
Que dizeis?
Bem vedes… A
guerra civil não pode durar muito… e vosso irmão tem o clero com ele… Ganhará a
luta e o trono…
Calai-vos,
Senhora!
A rainha levanta-se altiva e dirige-se para o leito.
Tendes razão.
Calemo-nos. É tempo de dormir… sem mais uma palavra el-rei segue-a, adormece.
A noite ia alta quando D. Sancho II de Portugal acordou. Algo
o despertara que não fora um alerta da sua consciência, mas um ruido forte
mesmo a seu lado. Acendeu uma luz. O leito onde a rainha se deitara estava
vazio. Não restavam dúvidas ao rei: D. Mécia tinha sido raptada!
Vestindo-se à
pressa, D. Sancho II acordou os fidalgos da sua casa, e com a ajuda deles
correu ao encalço dos fugitivos. Conseguiu descobrir-lhes a pista: seguiam a
caminho da forte vila de Ourem, já na posse de seu irmão o conde de Bolonha.
Mas, ao chegarem junto do castelo, os raptores estavam já a salvo. Enfurecido
gritou que lhe devolvessem a esposa. Respondeu-lhe uma gargalhada geral.
Morderam os lábios com raiva, os fidalgos de el-rei. Um deles gritou:
Poremos tudo
raso!
Como resposta
surgiu uma saraivada de flechas e pedradas. O rei mandou então fazer alto.
Esperai,
senhores! Não podemos, tal como estamos, submetermo-nos a mais ultrajes! Podem
roubar-me o trono mas não a esposa sem que os moleste!
Gil Martins levou
a mão à espada.
Senhor! Por
vós e Portugal sim! Mas por vossa esposa não levantarei a minha espada!
Que dizeis,
Gentil Marques?
Perdoai,
Senhor! Mas acreditais que os homens afetos a vosso irmão Afonso entravam nos
paços, iam à vossa alcova, tiravam de lá a rainha à força e só à saída um ruido
suspeito vos acordava?
O rei gritou:
Explicai-vos
Gentil Martins!
Submisso mas firme, o fidalgo concluiu:
Senhor vossa
esposa está em Ourem, onde possui terras que obedecem ao conde de Bolonha. E
essas terras continuam pacíficas. Acreditais que se rouba uma mulher do leito
conjugal sem que seu esposo desse pela luta que ela necessariamente travaria?
Insinuais…
pois…
Que ela não foi
raptada, mas fugiu!
El-rei levou uma das mãos à fronte.
Fugir? Porquê?
Comigo seria rainha…
Por quanto
tempo, Senhor?
O rei cerrou os dentes. Depois montando no seu cavalo,
ordenou:
Vamos,
senhores! E que este facto não seja alastrado!
Havia silêncio na noite que morria.
Amanhã rompeu e veio iluminar as terras de Coimbra, já
fidalgos e povo sussurravam a medo:
A rainha deixou
El-rei!
Alguns melhor intencionados, diziam:
O conde de
Bolonha mandou raptar a rainha…El-rei está sozinho… Vai ser o fim!
A guerra civil reacendeu-se, com mais intensidade. O
reino estava dividido. D. Afonso III conseguira partidários para a sua causa. E
o trono começou a tremer sob os pés de D. Sancho II. Tomando consciência de
que, sozinho, não teria forças para vencer o irmão, recorreu a Castela. O
infante D. Afonso, filho de D. Fernando III, recebeu D. Sancho II em Toledo e
aceitou a proposta de ajuda em troca de terras e rendas.
D. Afonso, conde
de Bolonha, receou essa ajuda de terra estrangeira. As forças com que contava
só estavam preparadas para lutar com os seus compatriotas. Mas tinha o clero e
o apoio do Papa. As forças de D. Sancho e de D. Afonso de Castela que chegaram
até Leiria, tiveram de retroceder para Espanha.
Chegado a
Toledo D. Sancho II sentiu chegar o seu fim. Gil Martins olhou o rei deposto
com angústia.
Meu Senhor! Os
amigos continuam do seu lado!
Um sorriso triste
foi a resposta do Ex- monarca. Lembrava-se de um irmão traiçoeiro que tudo lhe
roubou: Trono, mulher e “amigos”.
Tendes razão, D.
Gil. Vós continuais a meu lado…
Não falo de mim,
falo de outros.
Que outros?
Dos alcaides de
Guimarães, Óbidos, Castelo de Faria, o de Celorico, de Leiria. O que eles
lutaram, senhor!
Meu senhor! Não
contam agora os traidores nem os fracos, mas aqueles que vos trazem no coração!
Sim meu amigo,
não devo ser ingrato! Mas bem vedes, já nada me prende a este mundo. Falhei! O
rei ficou em silêncio que o amigo respeitou, pediu à brisa mais suavidade para
que o Ex-rei não fosse incomodado nos seus pensamentos.
O frio era intenso. No entanto um homem caminhava pelas
ruas de Toledo, indiferente ao frio, à chuva e à lama. Chegando ao seu destino,
bateu a uma porta. Outro homem veio abrir. O recém- chegado perguntou:
D. Gil Martins,
está?
Sim, meu senhor.
Quem devo anunciar?
Martim de
Freitas.
O senhor D. Gil
está junto à lareira. Aproximai-vos.
Vendo-o D. Gil
ergueu-se.
Grande honra,
tenho em receber-vos!
Martim de Freitas
pareceu não lidar ao cumprimento e perguntou em tom grave:
El-rei D. Sancho
é morto?
Sim… é morto.
Deus tenha a sua alma em descanso!
Vistes o seu
corpo sem vida?
Deus reservou-me
mais esse desgosto!
Pois quero eu
vê-lo também.
D. Gil Martins
elevou a estatura num gesto de surpresa.
Que dizeis, D.
Martim de Freitas?
O que acabais de
ouvir, senhor. Quero vê-lo e desempenhar- me da minha missão.
É assim tão
urgente e… necessário?
Sim. Trago comigo
as chaves do castelo de Coimbra. Preciso que el-rei me desobrigue do meu
juramento antes que o rei Afonso tome conta delas.
De olhos abertos
num espanto, D. Gil Martins olhava o visitante, perguntando a si próprio se o
prolongado cerco a que D. Martim de Freitas se submetera não dera cabo do seu
entendimento. Mas logo o fidalgo o esclareceu.
Senhor, creio
que fui bem explícito. O que peço é justo e não pode ser-me negado!
No cemitério, um
pequeno grupo olhava com assombro, e por vezes entre lágrimas,
Afigura altiva de Martim de Freitas, agora ajoelhado junto
da sepultura do que fora seu rei e rei de Portugal. O corpo estava exposto. O
fidalgo português curvou-se e, entre as mãos cruzadas sobre o peito do defunto,
depôs as chaves do castelo de Coimbra. Beijou-lhe as mãos. Depois levantou-se e
falou:
Meu rei e
senhor! Enquanto vivestes, sofri pela vossa causa as maiores privações,
dissimulando sempre, para dar ânimo aos meus companheiros. Assim eles
continuaram no castelo que é vosso e continuaram honradamente aguentando por
vós. Cumpri o meu juramento de lealdade, Senhor! Porém agora que sois morto e
não posso entregar-vos a cidade, quero ao menos fazer-vos entrega destas chaves
para que, desobrigando-me vós, eu possa entrega-las ao vosso irmão, o conde D.
Afonso, como renuncia vossa e não como triunfo das suas armas!...
Fez-se um pesado
silêncio após estas palavras, cadenciadas, solenes. Havia emoção em todos os
rostos desses homens habituados às agruras da guerra. Depois, silenciosamente
ainda, as chaves do castelo de Coimbra foram retiradas das mãos do rei morto e
a sua sepultura fechada para sempre.
Assim ficava
encerrado, também, um feito de lealdade que jamais as chuvas, os ventos, o pó
ou a lama dos caminhos poderão destruir, apesar do esforço do tempo!
Esta lenda, é mais História de facto do que lenda
FONTE: Lendas de Portugal; Gentil Marques, Circulo de
Leitores
Professor Dr. José Hermano Saraiva
Coimbra, Setembro de 2014
Carminda Neves